DA TRADIÇÃO

 





Mateus 15.1-14


Por um bom tempo ouvi de um nobre ministro evangélico, que a sua instituição saíra de uma determinada igreja tradicional e que a sua nova experiência eclesiástica não tinha marcas de uma tradição religiosa. Julgava ele ser algo jamais visto antes sobre a terra. Estudei a sua instituição profundamente, e como esperado, constatei que seu modo de reger o rebanho deu fôlego à tradição antiga da Ásia Menor, de Montano (século ll-lll). Talvez o nobre ministro tivesse outra forma de definir o termo tradição. Dentre muitas definições, escolhi a de Hegel:

"A tradição não é uma estátua imóvel, mas vive e mana como um rio impetuoso que mais cresce quanto mais se afasta da origem. (...) O que cada geração produziu no campo da ciência e do espírito é uma herança para a qual todo o mundo anterior contribuiu com sua economia, é um santuário em cujas paredes os homens de todas as estirpes, gratos e felizes, afixaram tudo o que os auxiliou na vida, o que eles exauriram das profundezas da natureza e do espírito. E esse herdar é, ao mesmo tempo, receber a herança e fazê-la frutificar" (História da Filosofia, ed. Glockner, I, p. 29).

Parafraseando o pensador alemão, a tradição é a produção, cujo produto é recebido, utilizado, alterado (enriquecido ou empobrecido) por outra geração e que tende a distanciar-se de sua fonte primária. No entanto, ter, viver ou defender uma tradição não significa necessariamente andar no erro. Se quisermos preservar os bons princípios, é considerável que os elevemos a nível de tradição. À igreja de Tessalônica, por exemplo, Paulo disse:

Mandamo-vos, porém, irmãos, em nome de nosso Senhor Jesus Cristo, que vos aparteis de todo o irmão que anda desordenadamente, e não segundo a tradição (παράδοσις) que de nós recebeu (2 Tessalonicenses 3:6) 

No intuito de preservar os princípios cristãos, Paulo afirma ser integrante de uma tradição. Para isso, ele pontua alguns contrastes: os irmãos da tradição (no plural) contrasta com o irmão desordenado (no singular); a tradição tem como autoridade o Senhor Jesus Cristo, contrastando com autoridade desgovernada do irmão isolado e a tradição que foi transferida pelo colégio apostólico contrasta com os ideais da oposição. A tradição a qual Paulo está fazendo referência está estritamente resumida nas escrituras. No fechamento do cânon, as escrituras saem do nível de tradição e são guindadas ao patamar de palavra de Deus. Tradição pode ser reformada, as escrituras, não! A pergunta que se faz é: posso cumprir a palavra de Deus em uma tradição religiosa? Desde que os princípios e os valores dessa tradição contribuam para a edificação da igreja, na palavra, sim.  

À guisa de esclarecimento, quero ressaltar também que a leitura apressada no que se refere aos fariseus, pode nos levar a deprecia-los. Provavelmente você tenha ouvido alguém chamar um outro irmão de fariseu, crendo que estaria proferindo um xingamento. Na verdade, os fariseus eram o que Cristo tinha de melhor em sua época. Não vou me deter a esse detalhe, mas se o caro leitor se interessar pelo tema, busque estudar o período intertestamentário, e constatar o quão úteis eles foram para os macabeus. O livro que costumo recomendar é O Período Interbíblico, 400 anos de silêncio profético de Enéas Tognini.

Nem todos os fariseus deram trabalho para O Senhor Jesus. O que o nosso Senhor tinha contra a boa parte deles era a atenção exacerbada às tradições dos anciãos em detrimento da palavra de Deus. O desequilíbrio era tanto que as escrituras encontravam-se subjugadas à tradição dos anciãos. Parece que estamos na mesma situação, hoje em dia. Nós nos apegamos tanto às estratégias, aos métodos e às nossas correntes teológicas que esquecemos que a real vontade de Deus, a sua palavra, é a que não volta vazia. A respeito dos fariseus, disse Jesus:

Todas as coisas, pois, que vos disserem que observeis, observai-as e fazei-as; mas não procedais em conformidade com as suas obras, porque dizem e não fazem (Mateus 23:3).

O nosso Mestre afirma que a teologia farisaica era boa, porém, eram incoerentes ao praticá-la. Comparando-os ao nosso tempo, temos dificuldade, até mesmo, de fazer boa teologia. Não estou sendo demasiadamente exigente, não é o caso aqui. Me refiro à necessidade de ministros dispostos a rever os seus credos. Não se trata de perfeição, mas de disposição em procurar acertar o alvo. No caso das seitas evangélicas (exclusivistas), não há recuperação, pois os seus donos as regem com mão de ferro e a fidelidade às escrituras não é um bom negócio para eles.


Mt 15:1,2

Então chegaram ao pé de Jesus uns escribas e fariseus de Jerusalém, dizendo: por que transgridem os teus discípulos a tradição dos anciãos? pois não lavam as mãos quando comem pão.

Jesus estava na Galiléia, e uma delegação vinda de Jerusalém (escribas e fariseus) o abordou. Eram como fiscais do Sinédrio. A multiplicação dos pães aconteceu, porém, mais do que a "simples" operação de maravilha, um requisito da tradição dos pais (anciãos) foi violado. 

Observe o quanto o mau uso da tradição pode cegar um indivíduo ou uma comunidade. Não levaram em conta: a magnitude do milagre; a saciedade da multidão, que estava faminta e a cobrança de um dever supérfluo, pautado na tradição humana. O ataque nada tinha a ver com a higiene pessoal, o que os preocupava era o não cumprimento de um ritual, fruto de ideias. 

A sacralização de práticas extrabíblicas têm acompanhado a igreja em toda a sua trajetória. Por vezes nos deparamos com grupos que fazem de suas experiências sobrenaturais doutrinas. Isso é muito perigoso! Já pensou na hipótese de Moisés ter pegado um galho de uma sarça e implantar a doutrina da Sarça Ardente; de Sansão ter criado a doutrina da Queixada Do Jumento; de Gideão ter consagrado a doutrina do Velo de Lã (...)?

Às vezes me questiono: quem é pior, o fariseu, que não tinham as informações que temos hoje, ou nós, que temos tudo prontinho, e ainda procuramos ser rebeldes?

Com muita tristeza, já presenciei líderes criarem palavrinhas mágicas nas iniciais de suas orações; de suscitar termos, ideias, práticas e conceitos veterotestamentários no intuito de implantar suas inclinações carnais.  


Mt 15:3-6

Ele, porém, respondendo, disse-lhes: Por que transgredis vós, também, o mandamento de Deus pela vossa tradição? Porque Deus ordenou, dizendo: Honra a teu pai e a tua mãe; e: Quem maldisser ao pai ou à mãe, certamente morrerá. Mas vós dizeis: Qualquer que disser ao pai ou à mãe: é oferta ao Senhor o que poderias aproveitar de mim; esse não precisa honrar nem a seu pai nem a sua mãe, e assim invalidastes, pela vossa tradição, o mandamento de Deus.

Já que a acusação tratava-se da honra aos pais na fé, Cristo mantém a natureza da questão e pergunta a eles a respeito da observância do mandamento divino que tinha como lei honrar os pais de sangue. Honrar, não tem o sentido que damos aqui no Brasil, que é dar presentes no aniversário, cartão postal, um abraço ou coisa do tipo. Honrar é pagar as contas, suprir todas as necessidades básicas. 

Segundo a tradição, se filho ofertasse uma determinada quantia em dinheiro às autoridades religiosas (Corbã), estaria isento da responsabilidade de cuidar de seus pais (Marc. 7:11). 


Mt 15:7-9

Hipócritas, bem profetizou Isaías a vosso respeito, dizendo: este povo se aproxima de mim com a sua boca e me honra com os seus lábios, mas o seu coração está longe de mim. Mas, em vão me adoram, ensinando doutrinas que são preceitos dos homens.

O hipócrita (ὑποκριτής) era aquela pessoa, por detrás da máscara, que havia no teatro grego. Jesus estava dizendo que no cumprimento rigoroso da tradição, os escribas e fariseus apresentavam-se com a máscara da lei, no entanto, o ator, por detrás da máscara estava cativo à tradição. Na aplicação do Senhor ao que Isaías dissera, podemos afirmar que o mau uso da tradição faz com que falemos de Deus, e não da parte Dele. O coração longe do Criador é o mesmo que tê-lo como uma alternativa. Quantos de nós consideramos O Senhor apenas como um detalhe, um acessório ou até mesmo uma ajudinha quando os nossos planos não saem conforme o nosso gosto? Cristo trouxe um comportamento de séculos atrás (Vll) para aplicar aos seus dias. Da mesma forma, podemos nos corrigir analisando as posturas desses fariseus. A adoração segundo Cristo é de coração, ter O Senhor Deus como o centro de nossas vidas.


Mt 15:10-14

E, chamando a si a multidão, disse-lhes: Ouvi, e entendei: o que contamina o homem não é o que entra na boca, mas o que sai da boca, isso é o que contamina (Impuro, comum) o homem. Então, acercando-se dele os seus discípulos, disseram-lhe: Sabes que os fariseus, ouvindo essas palavras, se escandalizaram? Ele, porém, respondendo, disse: Toda a planta, que meu Pai celestial não plantou, será arrancada. Deixai-os; são cegos condutores de cegos. Ora, se um cego guiar outro cego, ambos cairão na cova.

Sabendo Cristo que é inútil debater com uma mente escrava, Ele se vira para os recuperáveis e os ensina a relação que há entre o sagrado e o comum. A multidão do passado, como qualquer massa de hoje em dia, necessita compreender que diante de Deus nenhum ritual tem valor em si mesmo. Desde a criação o homem tem dificuldade em trabalhar os meios e os fins. Há bons meios que resultam em péssimos fins (pragmatismo religioso); há fins plausíveis que emergiram de meios ruins (analfabetismo bíblico) e há meios bíblicos que cultivaram fins piedosos (tradição apostólica). Por que temos tanta dificuldade em retornar à origem, por que o óbvio é tão difícil? 

O clamor do Senhor Jesus Cristo é: voltem ao que o Pai plantou; retornem ao que Ele disse! 

Certos fariseus acreditavam ser as luzes que iluminavam os cegos na escuridão, porém, Cristo acrescentou um detalhe: os guias também são cegos. Se a palavra de Deus não tem autoridade para guiar a nossa tradição, sucumbimos.


Diante de tais exposições, o meu clamor aos céus é que por meio deste singelo rabisco, você e eu possamos rever nossas atitudes ante aos nossos costumes, rituais, cosmovisões e referenciais.

Por Daniel Santos 

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